segunda-feira, 28 de março de 2011

Bem-aventurados os que tem fome e sede de Justiça, porque serão fartos

Jesus usa uma imagem bastante forte para ilustrar a gana do discípulo pela justiça: Fome e sede. O espírito do discípulo alimenta-se da justiça com a mesma gana que o corpo precisa de água e pão. O desejo de justiça, na vida do discípulo funciona como um apetite, existe com naturalidade, vem das entranhas. A falta de apetite pela justiça pode ser um sinal de enfermidade espiritual.

À semelhança das virtudes anteriores, a fome e sede de justiça formam uma condição espiritual, uma propriedade na natureza de ser discípulo de Jesus Cristo. Mateus registra no Sermão do Monte, vários enfoques sobre como não deveria ser a justiça do discípulo.
As faces da justiça
“Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus...” (Mat. 5:20).
“GUARDAI-VOS de fazer a vossa justiça diante dos homens, para serdes vistos por eles;” (Mat. 6:1).
Há portanto, alguma espécie de justiça que Jesus está afirmando não ser a justiça pela qual o discípulo deve ter apetite. No caso dos escribas e fariseus, todos sabemos que eles possuíam um tipo de justiça superficial, legalista e meramente punitiva. No texto de Mat. 6:1, alguns tradutores preferiram em vez de justiça, termos como: “boas obras” ou “esmola”:
“GUARDAI-VOS de fazer a vossas boas-obras diante dos homens”
ou
“GUARDAI-VOS de fazer a vossa esmola diante dos homens”
Neste caso a justiça do religioso traduz-se em benevolência ao necessitado. Todavia, mesmo que esmola ou boas obras possam também representar atos de justiça, aqui aparecem apenas como instrumentos de propaganda pessoal – serem vistos pelos homens – diz o texto. Jesus está condenando quem pratica atos de piedade como forma de repassar uma imagem daquilo que não se é. Assim é a justiça dos religiosos, e não é portanto, esse tipo de justiça a que Jesus está se referindo.
Então, de que justiça Jesus estava falando, se a justiça do discípulo deveria exceder a dos escribas e fariseus, e se não deveria ser semelhante a justiça dos homens? Que espécie de justiça está sendo enfocada?
Lembremos que os que têm fome e sede de justiça são ao mesmo tempo pobres de espírito. Logo, não possuem em si mesmos qualquer justiça própria. Os pobres de espírito reconhecem que toda a justiça que possuem e praticam vem de Deus. Lembremos também que Jesus está retomando cada conceito na tentativa de resgatar e ampliar cada um deles – não vim revogar a lei, mas cumpri-la (ampliá-la). No caso da justiça, em que sentido Jesus está ampliando-a?
É importante, para o inicio de nossa reflexão, levar em consideração a opção de Jesus em andar também com publicanos e pecadores, tratando-os com amor, graça e misericórdia. Não deveria ele, andar apenas com os “santos”, cuja ética parecia satisfazer todas as exigências da comunidade religiosa?

A justiça de Deus
No Antigo Testamento, a justiça de Deus é apresentada como um ato da Sua exclusiva graça. A justiça é percebida na perspectiva da redenção e salvação e não apenas da punição e condenação. Assim, aquele que é salvo é salvo por causa da justiça de Deus e o que é condenado, é condenado por causa do seu próprio pecado. Em geral, nos textos do Antigo Testamento que abordam sobre a justiça de Deus, se percebe neles o caráter punitivo da justiça, como conseqüência das atitudes dos ímpios. Em situações de injustiça, os textos apresentam Deus, muito mais como o salvador dos humildes, marginalizados, oprimidos – aqueles que inclusive, em muitos casos, são considerados pelos seus opressores, como sendo “os fora da lei”.
O justo na Bíblia é alguém alcançado pela graça de Deus, sem as obras da lei. Evidenciando que na relação: Deus e seres humanos, a justiça assume um caráter ético e moral bastante diferente das legislações: homem x homem. Dizer que a justiça de Deus é diferente, não significa dizer que é inferior a justiça humana. Mas, o fato é que: enquanto a justiça nas relações humanas é geralmente meritória, legalista, punitiva; a justiça Divina é também redentiva. Justiça e salvação chegam a ter o mesmo sentido. Há um texto de Paulo que traz muita luz sobre a manifestação da justiça de Deus em relação a humanidade.
Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas; Isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que crêem; porque não há diferença. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus; Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; Para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus. Onde está logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé. Concluímos pois que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei. É porventura Deus somente dos judeus? E não o é também dos gentios? Também dos gentios, certamente. Se Deus é um só, que justifica pela fé a circuncisão, e por meio da fé a incircuncisão. Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei (Rom 3:21-31).
Os judeus construíram ao longo dos anos um conjunto de mecanismos legalistas, que lhes propiciavam uma falsa sensação de merecedores dos favores de Deus. Um tipo de justiça que não corresponde à mesma referida por Paulo. Enquanto a justiça judaica punia, a de Deus pretendia redimir, sob a paciência de Deus. Paulo está resgatando o fundamento da graça – favor de um Deus soberano, por pequeninos que nada podem lhe dar em troca. Assim, todo orgulho, toda jactância são banidos, não havendo mérito ou justiça própria em ninguém. Veja o argumento conclusivo de Paulo: “Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não diante de Deus (...) Ora àquele que faz qualquer obra não lhe é imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida. Mas àquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça.” (Rom. 4:2, 4 e 5).
Paulo não está falando de um conceito novo. Recorre a um texto antigo de Davi para consolidar seu argumento: “Assim também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as obras, dizendo: Bem-aventurados aqueles cujas maldade são perdoadas, e cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado.
Observando com as lentes de Paulo, justo é aquele que é justificado por Deus de todos os seus pecados. Essa é a justiça primária que os felizes têm fome e sede. Eles reconhecem, que não possuem nenhum direito na relação com Deus. E por isso, sentem-se vazios, famintos, sedentos de uma justiça que é, antes de tudo, paciente, misericordiosa, cheia da graça de Deus. Justiça que, como refluxo da justiça de Deus, alimenta o discípulo de sonhos e esperanças, lhe mantém apetitoso de novos valores morais e éticos. Fome e sede de ver os pobres de espírito herdando a nova sociedade alicerçada na santidade de Deus.

A justiça nas relações humanas
Na perspectiva de Jesus, os “realizados com a vida”, por terem fome e sede de justiça, buscam em primeiro lugar o Reino de Deus e a Sua justiça. Conforme vimos anteriormente, a justiça de Deus é bem mais ampla do que as concepções humanas de direito. Os paradigmas da justiça do Reino são baseados em valores como a mansidão, sensibilidade, misericórdia, amor. Mas, dizer que a justiça de Deus é diferente, não significa dizer que é menor do que o mínimo exigido pela justiça humana, como direito a habitação, alimentação, saúde, educação, lazer, liberdade de exercer a vocação humana. Alguns desses direitos são direitos de se viver a vida como qualquer animal. Habitação e alimentação, por exemplo, antes de serem um direito humano, são um direito animal. E, mesmo que a fonte da felicidade do discípulo não dependa de condições externas, a sua felicidade plena se concretiza num ambiente, aonde as condições mínimas sejam suficientes para a realização plena de todos os seres humanos.
A fome e sede de justiça do discípulo traduz-se na busca e manifestação da justiça entre as pessoas. Na igualdade de dignidade no seio familiar, nas relações de direito justo para todos. Referimo-nos ao princípio bíblico de se requerer mais e responsabilizar mais, a quem tem mais, a quem mais recebeu ou conquistou.
Espero que você esteja acompanhando bem a nossa forma de raciocínio. Falamos primeiramente sobre a justiça na relação do ser humano com Deus. E aí, não temos nada a reivindicar. Ele nos acolhe e justifica pela Sua infinita graça. Mas, há uma outra dimensão da justiça, que se expressa nas inter-relações humanas. E neste caso o discípulo canta com o profeta Amós: “...corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene”. (Am. 5:24).
No Sermão do Monte quando Jesus encerra o conjunto das bem-aventuranças faz a seguinte advertência aos discípulos: “Bem-aventurados, sois vós, quando por minha causa vos perseguiram e mentindo disserem todo o mal contra vós, regozijai-vos e alegrai-vos porque é grande o vosso galardão nos céus. Pois assim, perseguiram aos profetas que viveram antes de vós”. (Mt. 5:11,12). Os discípulos de Jesus são os irmãos históricos dos profetas. Entender o ministério e mensagem dos profetas, para a partir daí, elucidar a missão dos discípulos, estava implícito nas palavras de Jesus. Na mensagem dos profetas, não há como se fugir da natureza ética da justiça. Nos profetas encontramos várias pistas da justiça relacionada a questões étnicas, políticas, sociais e econômicas.
No chamado “ciclo de Elias e Eliseu” houve confrontação aberta dos dois profetas contra monarcas injustos e seus exércitos opressores. Reagiram as injustiças do rei Acabe e sua mulher Jezabel. Defenderam viúvas e supriram suas necessidades. Fizeram promessas de esperança diante da aflição e desencanto do povo de Israel e Samaria. Isaías, o profeta das boas novas, o evangelista do Antigo Testamento, enquanto anunciava sua esperança escatológica, denunciava as distorções e cinismo dos religiosos (Is. 1:117), incoerência dos políticos (Is. 10:1,2), denunciava a acumulação de bens e desigualdades sociais (Is.5:8), repudiava a depravação moral e as ambigüidades éticas (Is. 5:18-23). O mesmo aconteceu com Jeremias, Amós e muitos outros. Todos foram perseguidos, maltratados; alguns, eliminados da vida.
Logo, a fome e sede de justiça do discípulo é também semelhante a fome e sede de justiça dos profetas, seus irmãos históricos. Portanto, da mesma forma como os profetas, alcançados pela graça de Deus, responderam de maneira ética as demandas dos seus dias, o discípulo contemporâneo tem a mesma responsabilidade.
Infelizes os fastiosos, os sem apetite pela justiça, os indiferentes, acomodados. Infelizes os que não escutam o clamor do pobre e oprimido, não pleiteiam por sua causa.
Felizes os apetitosos, os insaciáveis; os que nunca se fartam de nutrirem-se da justiça Divina.

Bem-aventurados os Mansos, porque eles herdarão a terra

Em geral, a terra é propriedade dos valentes, dos arrogantes. Os grandes conquistadores usurpam e tornam-se proprietários da terra. Eles sentem uma forte compulsão para provar aos outros que na verdade são fortes. Mas, de que adianta conquistar terra sem gente? Aliás, os que fazem guerra, no final das contas, não herdam nada, só destroços. Qual o proveito de conquistar espaços geográficos se não se conquistou ainda o terreno da própria intimidade pessoal, a tranqüilidade do coração, ou a segurança gerada pela certeza de uma singularidade sanada? De que adianta poder e domínio, se construído sobre coisa alguma? Os valentes, os poderosos e os famosos não podem andar a qualquer hora, em qualquer lugar. Sua liberdade de ir e vir é condicionada a presença de inimigos ou bajuladores. Não conseguem viver publicamente pela ameaça de seus inimigos. Não podem desfrutar da privacidade, por conta da invasão de seus bajuladores.
Mais sábio do que alguém que conquista impérios, palácios, cidades inteiras é aquele que tem o domínio de si mesmo, que sabe gerenciar e desfrutar bem de todas as suas potencialidades humanas. Quem ama a vida, como conseqüência herda o espaço do coração de outros. Para o discípulo, herdar a terra só faz sentido quando essa herança for uma herança de irmãos. Por isso, as chamadas grandes conquistas não interessam aos discípulos. Elas existem como uma forma de espoliação e exploração das pessoas. As grandes potências necessitam provar o poder que possuem. Os representantes da religião - em geral sacerdotes - necessitam provar aos clientes o prestigio que desfrutam diante de suas divindades. Cada ser (des)humano vai alimentando a tentação de provar sua força, poder, prestígio. A falta de mansidão consiste na necessidade fictícia de se provar para os outros que se é melhor ou mais forte. Perdemos a mansidão quando instalamos interiormente o paradigma da vitória a partir da derrota do outro. Quando reduzimos a vida a um quadrado cercado de cordas, em cujo espaço tem-se um único objetivo - destruir o adversário que ainda se põe em pé. Numa luta de boxe, por exemplo, o bom é o cara que bate e derruba o outro. A sua condição de ser aceito pelos torcedores acontece na destruição do adversário. Esse é o paradigma – provar que você é melhor, e o seu próximo é alguém de cara na lona. Por sinal, não se fala em próximo e sim em adversários, concorrentes. Os valentes olham para o mundo como uma arena, um campo de concentração. Os mansos vêem o mundo como um espaço abundante - há lugar para todos. E, todas as realizações essenciais à vida podem ser levadas a cabo.

Jesus nos deu exemplo de mansidão
Jesus podia falar de si mesmo como humilde e manso de coração. Tudo por sua condição anterior de Ser eternamente Ele mesmo: “No princípio era o verbo, o verbo estava com Deus e o verbo era Deus... E o verbo se fez carne e habitou entre nós...”. Era o reconhecimento de sua singularidade que dava a Jesus a condição de ser manso. Ele poderia arrogar-se de ser maior do que os anjos. Ele poderia usar poder para humilhar seus opositores. Mas, para Jesus, vencer significava abrir caminho de vida, inclusive, para seus opositores. Jesus fez milagres extraordinários, falou como nenhum outro, morreu de uma forma extravagante e espetacular. E, mesmo que nada disso tivesse acontecido, ele continuaria sendo Ele mesmo. O que fez, não fez para explicar-se, senão, tão somente para que os demais também aprendessem dele. Sua condição de mansidão o levou a conquistar mais gente do que muitos exércitos poderosos. Mesmo avaliando o cristianismo com todas as suas ambigüidades, e admitindo Jesus Cristo apenas como um personagem histórico, ainda assim, a sua mansidão foi mais eficaz do que a espada e os exércitos dos poderosos e tiranos. Ele tem conquistado o mundo como nenhum outro.
Alguém que para se identificar diz apenas: “Eu sou”; é uma pessoa que tem muita consciência de sua mais profunda essência. Desse modo, não há razão para se impor, manipular ou dominar. Jesus, ao dizer: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida", não está usando de presunção, está apenas afirmando a sua singularidade. Ele mesmo é o caminho, o jeito a ser imitado, o modelo de humildade e mansidão. Seus segidores serão felizes e coletivamente herdarão a terra.

Os mansos vivem na dependência de Deus
Os valentes fazem guerra pelo medo de terem seus espaços ameaçados, ou por acreditarem que somente têm o reconhecimento de outros, quando todos os espaços forem seus. Por causa disso, agridem, atacam, aniquilam, agem independentes de Deus. Vivem sob a síndrome da ameaça e por causa disso atacam; assim, são inspirados pelo medo e não pela coragem.
Já os mansos vivem de tal forma a sua condição de ser, que não sentem necessidade de provar aos outros coisa alguma, nem de competir por aquilo que não “é”, pois, para ser não precisam destruir pessoas. Não estamos falando de passividade. Os mansos são proativos, capazes de lutar, desde que o combate deles tenha como foco: a preservação da vida. Possuem coragem suficiente para confrontar as potestades do mal. Conseguem alimentar indignação contra o mal, e por isso superam, resistem e vencem o mal (Ro 12. 9-21).
Desse modo, a ação do discípulo não depende, em essência, da forma como os outros agem. Não se permite contaminar pelo mau que alguém possa lhe fazer. Para o discípulo, manter a integridade, preservar a dignidade significa conservar seu próprio modo de agir sem se deixar manipular pelo poder do mal. É capaz de sofrer o mal; e sendo portador do bem não se permite manipulado pelo poder que o outro lhe oferece para usar a maldade.
Os mansos não são arrogantes, nem violentos, não aceitam nenhuma espécie de violação contra a vida, ainda que dirigida a seus supostos adversários. Se não sentem necessidade de provar a ninguém coisa alguma, não precisam provar, nem mesmo, que são mansos. Para ser gente, os mansos sabem que a única condição é ser e nada mais. E, para ser, é obvio - não se depende de outros, exceto da própria decisão interior de reconhecer aquilo que se é, na dependência de Deus.

Apogeu da mansidão
A cruz foi para Jesus o último sinal visível de sua mansidão. Exercitar consigo mesmo o poder de não usar a violência: Não pedir fogo do céu, não aceitar a espada como instrumento de vingança. Somente alguém com muita consciência daquilo que realmente É, não sente necessidade de violentar, agredir, não sente necessidade, nem mesmo de explicar-se, apresentar títulos, exibir prestígio. Na cruz Jesus estava exposto à sua única condição de Ser. Nela apagam-se todos os adjetivos. Ele é exclusivamente Ele, e nisto consiste toda a mansidão, bem-aventurança, enfim toda a Sua felicidade. O discípulo é desafiado também a negar-se a si mesmo e tomar a sua cruz. Mas, só nega-se quem é manso, e somente quem tem noção do valor de simplesmente ser, é realmente manso.
Infelizes os valentes, felizes os mansos. Infelizes os que para justificarem o fato de não-ser precisam destruir, agredir, violentar, crucificar; pois pensam que eliminando, o outro não-será mais. Felizes os que não precisam usar de nenhuma forma de violência para continuar vivendo. Felizes aqueles que, dotados da consciência de serem feitos a imagem e semelhança de Deus, desfrutam da mais bela de todas as vocações – ser gente. São felizes por permitirem Deus salvar neles as virtudes. Conseguem confrontar, sem medo, seus inimigos, os tiranos, mas podem, também orar e interceder por eles.
Os discípulos são felizes porque serão chamados filhos de Deus, e como filhos de Deus, desejam que o sol e a chuva venham sobre todos os seres humanos.

Escrito por: Carlos Queiroz

Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados

A sensibilidade é uma peculiaridade humana. Frieza, indiferença, apatia são manifestações daqueles que se permitiram macular pelo mal, e, tendo corrompido a natureza humana, tornaram-se infelizes - desumanos. Os humanos vertem lágrimas, choram suas próprias mazelas, sentem na pele a dor do outro, lamentam e ficam indignados diante da crueldade e injustiça dos tiranos. Os que choram são felizes por conseguirem preservar a sua natureza, sua vocação de ser gente. Neste caso, chorar ou manter a sensibilidade é uma virtude nata. À semelhança da primeira bem-aventurança, chorar é também um estado de alma, uma condição espiritual, um modo de ser do discípulo de Jesus Cristo.


Jesus chorou

Jesus sensibilizou-se várias vezes. Foi sensível ao compadecer-se das multidões como ovelhas sem pastores (Mt 9. 36). Lamentou diante do cenário de indiferença, rejeição e incredulidade do seu povo: “Jerusalém, Jerusalém (...) quantas vezes eu quis te agasalhar como a galinha agasalha os seus pintainhos e tu não quisestes” . Jesus chorou diante dos familiares e amigos de Lázaro. Ele sabia que seu amigo ressuscitaria, portanto não era a morte de Lázaro que ele lamentava. Seu lamento, parece indicar sua sensibilidade humana, quando constata a ausência de Algo mais no coração do público. Neste caso específico, a ausência da fé e manifestação do desespero, a não compreensão da Vida. Lázaro estava vivo, mesmo que o corpo já estivesse em estado de putrefação. Acredito que Jesus ressuscitou Lázaro, muito mais para que pudéssemos entender esse mistério transcendente da vida. Jesus invadiu o mundo oculto de Lázaro e o trouxe de volta, para que os viventes pudessem entender que a vida não se acaba no túmulo. Imagino que Jesus estava chorando o fato de que, os vivos, enquanto choravam seu luto, não tinham sensibilidade para perceber a vida desdenhando da morte.


Com-paixão pela vida
Chorar por chorar não indica felicidade, pode ser apenas uma reação fisiológica, uma descarga emocional. Alguns choram por conta de tristezas, frustrações, decepções; outros por estresse e esgotamento. E mesmo que este não seja o choro referido por Jesus, não estamos condenando ninguém por essas manifestações. Aliás, elas são sinais de que ainda existe um ser humano com vida. Só os mortos não choram mais. Para os vivos, o choro pode indicar uma sensibilidade latente, manifesta por causa de perdas, sofrimento, saudade, indignação com a injustiça; e, viver sem tais sentimentos deve ser motivo de preocupação. Mesmo entendendo o choro natural como um bem que todos possuímos, não é sobre este ato lacrimal que Jesus está se referindo. No Sermão do Monte, chorar é mais do que uma função biológica ou uma reação emocional. A sensibilidade do discípulo é um valor interno, é uma virtude daqueles que se percebem bem pela felicidade de serem portadores da compaixão de Deus. Razão de se manifestarem indignados diante de qualquer ameaça contra a vida.
Sendo um estado de alma, uma virtude permanente, pode-se viver a felicidade a despeito das lágrimas ou da lamentação. O choro que gera felicidade é a com-paixão pela vida. Sem esta com-paixão, gemido que intercede, clamor que busca em Deus o socorro para os fragilizados, o choro é mera descarga emocional. Os discípulos choram e são felizes, porque o choro vem como sinal da humanidade interior redimida. Os discípulos reconhecem suas limitações e consequentemente confessam e arrependem-se de seus pecados. E, na terapia da confissão encontram a alegria de serem amados e acolhidos pelo perdão de Deus.
Pedro chorou amargamente, quando percebeu seu descaso, na ocasião em que negou solidariedade a Jesus Cristo (Lc 22. 62). Se de um lado, sua negação foi uma manifestação da indiferença desumana, por outro lado, suas lágrimas foram um sinal, de que, dentro dele existia um ser humano capaz de lamentar sua fragilidade, chorar copiosamente a sua própria desventura. "Os que choram” desfrutam de uma virtude interior, um modo de ser, que lhes propicia felicidade.

Desventura e esperança
São felizes pela capacidade de amar livremente. E, claro, quem ama, sente pelo outro profunda compaixão. Paulo, referindo-se ao seu cuidado pela igreja em Corinto, expressa esse sentimento como se fosse um processo de gestação da vida de uma parturiente: “Sinto como que dores de parto”. João, o Apóstolo, em sua visão na Ilha de Patmos, mais especificamente na visão do trono de Deus (cap.4 e 5), confessa: "...e eu chorava muito...". Chorava pela sua limitação, por não encontrar ninguém digno de abrir e desvendar as revelações do Livro. Mas, seu choro não parece indicar infelicidade, tristeza, desencanto. Muito pelo contrário, indica o despojamento total de alguém que se percebe pobre de tudo, por encontrar-se diante de um conhecimento excepcional, que João procura decodificar em sua apocalíptica. Seu choro manifesta-se como sinal de uma virtude espiritual, capaz de sensibilizar-se e perceber a presença e atuação de Deus na história. Toda a poesia construída por João apontam para um coração repleto de alegria (Ap 5.1-14). Há subentendido no texto, a consciência de um homem realizado com a vida, a despeito da prisão e isolamento forçado. Suas lágrimas são uma espécie de tristeza última - percepção de contrastes: João denuncia o desencanto consigo mesmo e anuncia a esperança no Cordeiro que desvenda a visão surpreendente (Ap 5. 4-10). Contraste evidente na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Sob o enfoque do Cordeiro que morreu e ressuscitou, João encontra a felicidade de suas lágrimas - “emoção” profunda, cuja sensibilidade abraça o sentido da vida, mesmo que, à margem da sepultura.
Lembremos que o Apocalipse de João foi escrito para explicitar uma experiência anterior ao livro. Portanto, a sensibilidade de João já estava antes do texto. Sua virtude de ser um bem-aventurado, sensível evidencia-se na forma como registra uma apocalíptica de dores e esperanças. Estou tentando explicar, que utilizamos este texto de João, não para interpretar o texto, mas tão somente para falar de um homem que, por desfrutar da bem-aventurança da sensibilidade, consegue chorar sem mágoas e ressentimentos. O choro de João é semelhante ao quebrantamento dos compungidos pelo amor vindo de Deus. Contrição, que é por si mesma, a alegria do discípulo de se perceber perdoado e amado por Deus.


Lágrimas fertilizadas pelo Espírito
Tem mais: O discípulo é feliz não somente pelo acolhimento do perdão, mas também, pela esperança da consolação proveniente de Deus. No caso específico dos homens e mulheres afligidos e perseguidos por andarem com o Messias, em verdade, eles estavam usufruindo da prometida consolação de Israel (Lc 2:25). Entre eles brotava esse choro - "sensibilidade do Espírito" em processo de parto acolhendo a Criança da manjedoura, o Emanuel - Deus conosco. Chora quem alimenta o faminto, agasalha o despido, hospeda o forasteiro; e assim fazendo, está acolhendo o Filho de Deus (Mt 25.31-46).

O choro que gera alegria, bem-aventurança é o pedido em oração capaz de fertilizar o terreno da alma para habitação do Consolador - "Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais o Pai celestial dará o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?" (Lc 11.13). E Quem precisa de um Consolador, senão homens e mulheres sob conflitos, perseguições, dores e aflições? Homens e mulheres sensibilizados com as dores dos injustiçados, perseguidos e maltratados? Precisa de um consolador quem chora a saudade da Esperança que ainda vem.

Os que choram estão incluídos no mesmo quadro de referenciais e valores dos profetas. Estão entre as pessoas marcadas pelo batismo do Consolador. Só sente necessidade do Consolador quem realmente chora essa lágrima fertilizada por uma nova vida, por uma "sensibilidade mais profunda" - fôlego do infante que prazerosamente chora a alegria do pós-parto de ter nascido filho de Deus. Sem este fôlego, sopro de Deus, não há choro, não há sensibilidade e não havendo sensibilidade não tem como alguém se perceber feliz.
Os que choram são felizes porque têm, pelo Espírito, a sensibilidade de se colocar no lugar do outro, especialmente dos fracos, aflitos e necessitados. São felizes pela capacidade de amar livremente. E, claro, quem ama, sente pelo outro profunda compaixão. Os que choram alimentam-se das mesmas condições e sensibilidade dos profetas, que movidos pelo Espírito, tinham a felicidade de fertilizar com suas lágrimas os terrenos dos corações aonde semeavam a Palavra de Deus. Tinham sensibilidade e amor pela vida, indignavam-se com a injustiça, lamentavam a dor e o sofrimento impostos aos seres humanos fragilizados (Ne 1.1-3; Lm 1 e sg. ). A despeito de todas as maldades dos desumanos e contradições históricas percebidas pelos sensíveis, os que choram são felizes por serem portadores desta sensibilidade incomum.
Estes que choram como virtude insólita, usufruem da habitação do Consolador e são indubitavelmente felizes. E quanto mais “pneumatizados” pelo Espírito, mais sensíveis se tornam. Essa "sensibilidade do Espírito", a priori a todas as manifestações emocionais; apenas por analogia, pode ser comparada a sensibilidade humana. Mas é de fato, o “gemido do Espírito...” (Ro 8.26-28), que assiste em nossas fraquezas. Assim, quem tem o Espírito, desfruta dessa virtude permanentemente consoladora - "sentimento" transcendente capaz de compungir ao amor, completar e ampliar toda a alegria, realização, bem-aventurança do discípulo de Jesus Cristo - Sensibilidade que permite-se batizar com as lágrimas da consolação.

Escrito por: Carlos Queiroz