quarta-feira, 28 de outubro de 2009

EM SEIS PASSOS QUE FARIA JESUS




TERCEIRO PASSO"Desfrute sem possuir"

Os primeiros passos, embora imprevisíveis e, portanto virtuosos, são essencialmente cosméticos e relativamente pouco exigentes. Tudo começa a se desequilibrar quando se fala em dinheiro, e Jesus demonstra não ignorar isso. Ele então fala em dinheiro o tempo todo.


Nisso está outro aparente paradoxo seu: o Filho do Homem, que ostentava aos quatro ventos não ter salário nem casa própria, usava descaradamente o dinheiro e as riquezas para desenhar suas imagens e comparações mais fortes. Por um lado, não há como ignorar que sua postura geral é consistentemente crítica à obsessão – não desconhecida na sua época, inescapável na nossa – pelo acúmulo de bens materiais; por outro, fica claro que Jesus não ignora que a riqueza é muitas vezes a metáfora mais adequada, verdadeiramente essencial, para o que ele está querendo dizer.
Jesus, o frugal, o maltrapilho, não hesita em comparar o reino de Deus ao tesouro enterrado em quem alguém tropeçou, ou à pérola valiosa que um colecionador vendeu tudo que tinha para adquirir. Ele
alerta que o tesouro de um homem e seu coração ocupam o mesmo lugar ao mesmo tempo, e que vale por isso mais à pena investir num tesouro no céu, onde a riqueza é imune a desvalorização e à apropriação indébita. A recompensa do reino é comparada a denários na parábola de Mateus 20, o perdão a uma dívida quitada em Mateus 18, e as responsabilidades do reino a talentos de ouro em Mateus 25 – isso para não sair do primeiro evangelho.
Provocativamente, como em tudo que fazia, Jesus acaba propondo que a esfera de Deus e seu imponderável domínio podem ser adequadamente comparados àquilo que associamos de forma mais
imediata ao valor, ao desejo e à satisfação – não o sexo, não o amor, não o poder, mas o dinheiro (em que estão contidos os anteriores). A vida encontrada em Deus é apenas comparável à moeda que foi
recuperada, à rês valiosa que se reencontrou: ao tesouro que por um lado vale todo investimento, por outro o requer.Em suma, usando as imagens de seu oponente, Jesus defende que riqueza material é, estritamente falando, contradição em termos.
A única verdadeira riqueza, e inexpugnável, é a do espírito. Ele, no entanto, está longe de propor um ascetismo em qualquer sentido rigoroso; está longe de propor a mortificação dos sentidos que muitos (sem motivo) associaram à sua postura. Ao mesmo tempo em que garante que não vale à pena correr atrás do material, ele convida-nos a desfrutar incessantemente dele: olhai os lírios do campo, qual pai daria ao filho uma pedra em vez de pão, estou resolvido a jantar na sua casa, aceite este sanduíche de peixe, reabasteça meu copo de vinho, fui outro dia a um banquete, mais feliz que o convidado só o anfitrião.
É um equilíbrio que nos parece paradoxal, mas Jesus no fim das contas está dizendo que o pobre e o frugal estão melhor equipados para desfrutar das boas coisas da vida – não em virtude de qualquer
pureza inerente de coração, mas simplesmente porque a limitação da sua condição força-os a valorizar o momento, que é no fundo o que todos tem. “Por mais empenhado que esteja, qual de vocês consegue
adicionar meio metro à sua estatura?”Para o rabi de Nazaré ser rico e ganancioso não é conduta
especialmente corrupta ou perversa – está mais para o imbecil.
Porque, ele ousa argumentar, correr atrás do material impede-nos justamente de desfrutá-lo. O mais rastaqüera lírio do campo ostenta guarda-roupa mais exuberante do que o de Salomão; os pássaros
banqueteiam-se e empanturram-se com mais gosto do que Herodes. Um pão de queijo no pé da serra desbanca o mais irretocável Boeuf Bourguignon. Uma caminhada ao lado de quem se ama sobrepuja
o banco do passageiro vazio de uma Ferrari. Um pé descalço é mais feliz do que o calça Mr. Cat. E assim por diante.Seguir esse insano passo de Jesus requer ao mesmo tempo um intransigente desapego às coisas materiais e um deleite imoderado em desfrutar do que o material existe para fornecer. Exige desfrutar sem possuir.
Não quer dizer abrir mão do trabalho ou do dinheiro, visto que Jesus convivia sem problemas com ambas as coisas. Não quer dizer abrir mão dos prazeres da vida, já que neste mundo o prazer é coisa tão comum que para abrir mão dele seria necessário abrir mão da vida. Trata-se, aparentemente, de ser e permanecer uma presença subversiva numa cultura que glorifica a incessante busca pela aquisição e pela acumulação. Trata-se de demonstrar em atos revolucionários e postura silenciosa que uma bem-direcionada frugalidade supre com folga e, no fim das contas, desqualifica e esgota
essa abundância ilusória.
Significa, certamente, abrir mão do que o dinheiro existe para otimizar: a segurança e o poder. Deve ser por várias razões que corremos atrás de dinheiro, mas correndo atrás dele confessamos
carecer desesperadamente da sua credencial. Para os autores do Novo Testamento a ganância é idolatria porque é essencialmente mentirosa – promete segurança e poder quando ambos são derramados sem qualquer critério ou pré-requisito por Deus. O mundo de Jesus é seguro não porque os meus cofres e celeiros estão cheios, mas porque Deus é Pai. A ganância é mentirosa porque promete embalar e entregar, a seu preço, aquilo que Deus dá de graça no pacote básico da vida.
Viver como Jesus é certamente viver à margem do culto da performance. Alguns lírios talvez sejam mais bonitos do que os outros, mas a sua beleza essencial está em serem, não em estarem. Alguns pardais talvez cantem melhor do que os outros, mas nenhum é em última instância mais feliz porque canta melhor – e Deus sabe quando cai cada um, indiscriminadamente. Isto é, nosso valor não está em acumular, em desempenhar ou em possuir, mas em desfrutar, que é ser.
Viver assim não é por certo condenar os ricos ou evitá-los, condenar a riqueza ou evitá-la. É por certo duvidar as promessas dos dois.
Não é cultivar o ócio, mas é não abrir mão da tranqüilidade e do autogoverno.
Para seguir os passos de Jesus é preciso abraçar o assombroso paradoxo de desfrutar sem possuir. O Apóstolo intuiu acertadamente essas coisas, e falou que devem ser “os que choram, como se não chorassem; os que se alegram como se não se alegrassem; os que compram como se nada possuíssem; os que se utilizam do mundo, como se dele não usassem; porque a aparência deste mundo passa”. Para ser como Jesus é preciso não viver para a riqueza e, ao mesmo tempo, não ignorar o seu poder de metáfora. É preciso não dobrar-se a Mamom, mas fazer uso descarado das riquezas a fim de fazer verdadeiros amigos (Lucas 16:9). É preciso usar o dinheiro sem ser usado por ele; extrair gozo do material sem ser desfigurado por ele. É preciso ser generoso como Deus, pobre como Jesus. Dar a César a ninharia que é de César, receber de Deus a abundância que é de Deus.

Novíssimo manual de Conduta
do seguidor de Jesus
de Paulo Brabo para Néviton Marci

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

EM SEIS PASSOS O QUE FARIA JESUS




SEGUNDO PASSO
"Faça o que os outros não esperam. "



A intolerância contra os religiosos não é a marca mais singular do impenitente seguidor literal de Jesus; talvez não seja sequer a primeira. Esse passo na verdade flui naturalmente dos seguintes, que serão talvez mais íntimos e essenciais (temos além disso a vantagem de que os líderes religiosos de hoje, embora requeiram incrivelmente mais atenção, luz da ribalta e purpurina, são em geral – e graças aos céus – levados menos a sério do que no tempo de Jesus. Mesmo os que os que se dão ao trabalho de ouvi-los tratam de não levar em conta o que eles exigem).
O segundo passo para quem quer seguir a trilha ainda virgem deixada por Jesus é mais sutil e muitas vezes mais exigente. Ele requer que sejamos como ele, em tudo inclassificáveis e inesperados:
Lisos como peixes. Requer que façamos o que os outros não esperam de nós a cada dado momento – um momento atrás do outro, a vida inteira. Que permaneçamos um incômodo mistério para os outros,
não pela nossa conformidade a padrões tidos como suficientemente exigentes, mas pela nossa inconformidade para com esses e para com todos os padrões. Que sejamos, numa palavra, subversivos.
Essa absoluta imprevisibilidade de Jesus era talvez a sua característica mais evidente e desconcertante para os contemporâneos dele. Se algum consenso foi se desenvolvendo entre os que iam conhecendo o descarado rabi da Galiléia era que nada se podia tomar por certo a respeito dele. Não importava quão seguro fosse o seu argumento, quão firme a sua convicção, quão inabalável a sua dedicação: Jesus desarmaria todas às vezes, para o bem ou para o mal, qualquer um que se aproximasse dele oferecendo um elogio ou uma provocação.
Não havia como fazer com que o Filho do Homem fizesse o que se esperava dele. O sujeito era indomável. Quando se esperava que ele curasse o paralítico que conseguíramos descer a muito custo pelo buraco no teto, ele perdoava os pecados do infeliz. Quando se esperava que ele despachasse a prostituta que veio embaraçá-lo num jantar oficial, ele fazia com que apenas ela se sentisse à vontade. Quando se esperava que ele curasse o leproso antes de tocá-lo impunemente, Jesus fazia o contrário. Quando Pedro oferecia num único gesto um elogio e uma boa intenção, Jesus chamava-o de Satanás. Quando vinha dizer que sua família estava aguardando lá fora Jesus esclarecia que sua família já o estava seguindo aqui dentro. Quando se esperava um mínimo respeito aos religiosos, ele garantia que as prostitutas chegavam ao céu antes deles. Quando uma devota erguia seu embevecido louvor da multidão: “Feliz é a mulher que lhe deu a luz, e os seios que lhe amamentaram”, Jesus contradizia na cara dura.Como um incômodo trickster galileu, um João Grilo dos sertões da Judéia, Jesus era compassivo quando esperava-se o seu furor, implacável quando estávamos certos de sua aprovação, atordoantemente sagaz quando tinha-se por certo que ele cairia na nossa armadilha.
O rabi saía distribuindo provocações teológicas e morais, denunciando simplificações, desmascarando sem dó e em público.
Seus antagonistas armaram contra ele todo tipo de armadilhas teológicas, morais e políticas – Jesus se safava de todas e com brilho, com exuberância, com medidas iguais de sarcasmo e bom humor. Ele
calava seus inimigos e zombava respeitosamente da efígie de César com uma moeda emprestada na mão; sem parar de escrever com o dedo na areia, salvava numa cajadada só a donzela em perigo e fazia
com que seus acusadores admitissem que não estavam eles mesmos livres de pecado; quando duvidaram que houvesse boa teologia em sua afirmação de ser filho de Deus, demonstrou graciosamente pela Escritura que não somos todos outra coisa além de deuses – até o ponto em que, sensatamente, “ninguém ousou mais fazer-lhe qualquer pergunta”.
Gente que nunca tinha ouvido falar de Sócrates puxava conversa com o rabi e não saía com uma convicção ilesa. Ele desconstruía, transtornava, revirava raciocínios, julgamentos e condenações.
Ao velho Nicodemos ele explicou, nada explicando, que para ver o céu era preciso nascer de novo. Dos discípulos que o tinham como grande mestre ele lavou os pés, e ensinou-os que para ser o maioral
é preciso ser escravo voluntário e eficaz de todos. Propôs a adultos perplexos e funcionais que para pôr o pé no reino das vantagens de Deus é preciso ser incompetente como uma criança. Disse a gente miserável que infelizes eram os ricos, e prometeu-lhes ainda mais miséria e uma vida proporcionalmente abundante. Em Samaria recusaram-se a conceder-lhe pouso, pela simples razão que ele rumava para Jerusalém; dias depois, à sombra do Templo, ele contava uma parábola em que o samaritano é o indiscutido herói. Jesus era universalmente conhecido por não fazer e por não
dizer o que se esperava dele, e penso que essa imprevisibilidade era de fato a marca mais contundente da sua postura pública. O paradoxo, naturalmente, está em que esta sua característica em particular é a que os cristãos menos tem se preocupado em incorporar ao longo do tempo. Há cristãos que seguem o Primeiro Passo e demonstram uma saudável intolerância contra os religiosos; um número incrivelmente menor segue Jesus em ser inesperado como ele foi. Não há catecismo ou Escola Dominical que nos ensine a sermos desbocados, independentes, provocadores e desarmastes como Jesus.Pelo contrário, os que se afirmam e se crêem cristãos nos nossos dias levam a marca quase universal de vaquinhas de presépio: formatados, inofensivos, dóceis e obtusos. Tudo que aparentemente temos a oferecer são respostas prontas, gestos decorados e a mais careta e reacionária das posturas. Somos um bando açucarado de beatos e carolas: uma assembléia de bocós, e não os subversivos que nossa vocação exigiria de nós.E não é como se Jesus não tivesse deixado claro que esperava a mesma postura indomável e independente dos seus seguidores; pois deixou. Ele convidou os discípulos, em palavras e incessante exemplo, a que fossem “inocentes como pombas e astutos como as serpentes”. Infelizmente, aconteceu de cristãos de todas as épocas terem acreditado que as duas coisas são incompatíveis. Alguns de nós, tenho de reconhecer, são inocentes como pombas, embora profiramos
em geral ser obtusos como asnos e mesquinhos como sanguessugas. Astutos como serpentes, estou para ver. Isso porque a postura de contradição que Jesus aparentemente exibia não era gratuita nem arbitrária. Ele não contradizia por contradizer; não era do contra como um adolescente. Sua
implacabilidade tinha um fundamento e um método.Mas exigia ser astuto como uma serpente, e em determinado momento ele passou a exigir o mesmo dos seus discípulos. Não basta que a sua integridade exceda a dos fariseus, ele foi deixando claro; vocês tem também de ser mais espertos do que eles. Para ser imprevisível é preciso ser esperto; para enxergar a armadilha sendo montada é preciso tarimba; para evitá-la é preciso jogo de cintura; para desarmar o seu adversário publicamente, sarcasmo e bom humor; para desmascarar o seu adversário diante dele mesmo, uma
compassiva mas implacável inteligência verbal.
Pureza de coração e sagacidade de espírito não são coisas que se veja andando juntas todo dia, mas era o mínimo que esperava o rabi de um seguidor seu. Basta ao discípulo ser como o seu mestre.
Com o tempo, depois da partida de Jesus, os apóstolos foram miraculosamente incorporando essa contundente característica em suas posturas individuais. Foram se imbuindo, por assim dizer, do
espírito de Jesus, e acabaram tornando-se tão subversivos quanto ele. Pedro, João, Paulo, Estevão, Tiago e seus asseclas, de inofensivos ou pelegos que eram, tornaram-se absolutamente incômodos ao sistema; os que não encontravam como argumentar com eles buscaram logo modos lícitos e ilícitos de silenciá-los. Finalmente Jesus estava sendo homenageado e seguido como convém, e para o mesmo destino. Se você quer ser como Jesus, tem de ser mais esperto do que a maioria dos ursos. Não basta sair pelo mundo usando óculos cor-de-rosa e desovar um Deus te abençoe no colo de cada um. É preciso ser implacável. Você tem de ser incômodo para todos os sistemas, inclusive para o seu. Tem de abrir mão de respostas prontas e posturas estanques. Não pode mais ver a injustiça e ficar calado. Tem de pressentir a armadilha e desarmá-la. Tem de salvar o oprimido e ainda deixar o opressor numa posição publicamente e pessoalmente desconfortável. Tem de cobrir de aceitação os enjeitados
e encher os certinhos de dúvidas. Tem de ser inocente como as pombas e astuto como as serpentes.
Tem de ser um herói. Se queremos seguir Jesus para onde ele foi, o segundo passo é sermos inesperados, incômodos e inclassificáveis como ele foi.

Novíssimo manual de Conduta
do seguidor de Jesus
de Paulo Brabo para Néviton Marci

terça-feira, 13 de outubro de 2009

EM SEIS PASSOS QUE FARIA JESUS

PRIMEIRO PASSO
"Viva a intolerância contra os religiosos."



A intolerância religiosa tem de ser tão antiga quanto a própria idéia de religião, mas é duvidoso mérito dos cristãos (e a partir de agora usa a palavra na pior acepção do termo, e também a única) ter refinado o conceito associando a alternativa à escravidão, à tortura e à morte em larga escala. O cristianismo foi a primeira religião da história a ganhar verdadeiro peso cultural através da


Novíssimo manual de Conduta
do seguidor de Jesus
de Paulo Brabo para Néviton Marci


Li este texto e gostei bastante. Pr. Manoel Góis.
conversão – ao contrário das pacíficas religiões anteriores, das quais restam algumas, e que preferiam apostar a eventual consagração no milenar e lentíssimo método de transmissão e reelaboração de pai para filho.
O cristianismo histórico foi desde o início, exatamente como nos nossos dias, empreendimento de curto prazo, indústria de resultados. Jesus passou de ilustre desconhecido a único Deus do vertiginoso Império Romano em meros 300 anos – menos que um piscar de olhos
em termos históricos. Não é de estranhar que pelo menos metade dessa conversão nominal do mundo tenha sido adquirida na ponta da espada. A fim de salvar os incrédulos era necessário não tolerar a sacrílega religião deles: os cristãos entenderam o imediatismo do Ide e saíram pelo mundo fazendo inimigos, ostracizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito. Essa dupla paixão pelos resultados e paixão pela publicidade deixam claro que o cristianismo histórico não é o menos eloqüente antecessor do convulsivo capitalismo contemporâneo.
Essa implacável visão de mundo, da expansão numérica e comercial como missão divina, determinou toda a história do ocidente, inclusive a sangrenta colonização das Américas. Em 1454
o Papa Nicolau V resume essa postura geral na sua Bula Romanus Pontifex, em que concede ao rei Afonso de Portugal (e a seu príncipe D. Henrique, que daria forma final à nau oceânica portuguesa e assim o chute inicial às Grandes Navegações), uma singela série de privilégios materiais associados à sua pureza de coração:
“(...) concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar e subjugar quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo aplicar em utilidade própria e dos seus descendentes (...)”

Nenhuma manifestação do cristianismo institucional dos nossos dias difere, em qualquer sentido importante, da inclinação geral do parágrafo acima. Os filhos do Rei permanecem reclamando seus direitos, absolutamente convencidos da primazia da sua condição. Os religiosos cristãos chafurdam em seus merecimentos, e oram descaradamente para extrair alguma prosperidade dos inimigos de Cristo ou reduzi-los à servidão – o que for mais imediato ou der mais prazer (e é naturalmente graças aos cristãos que cremos que essas duas últimas coisas andam juntas).
Por alguma razão que Cristo não teria como entender, os que se consideram cristãos são os mesmos que se consideram religiosos. E, dentro da mesma lógica ignorante dos fatos, os que não se submetem
à religião são considerados inimigos de Cristo.Talvez baste para você pensar e agir assim, mas se você quer ser de fato como Cristo é absolutamente necessário dar o primeiro e louquíssimo passo na direção de Deus e para longe da religião. Porque Jesus, como deixam abundantemente claro os evangelhos, promovia e aplicava consistentemente uma forma muito particular de intolerância religiosa: a intolerância contra os religiosos. Jesus, que comia com estelionatários, bebia com agiotas e era amigão de prostitutas, tolerava aparentemente tudo em todos.
“Eu não condeno você”, ele ousou blasfemar aos ouvidos da mulher adúltera.
O rabi puxava conversa com divorciadas promíscuas, pousava sua mão sobre leprosos de que todos desviavam o olhar e dormia nas camas rendadas de inimigos do povo. O sujeito conseguiu o feito inédito de sustentar a fama de homem de Deus ao mesmo tempo em que abraçava os puxadores de fumo, traficantes, travestis e aidéticos do seu tempo. Mas havia um limite para a sacanagem que ele podia engolir. A única classe de pessoas que fazia Jesus perder a paciência e a compostura era, formidavelmente, a dos religiosos. Aquele que mostrou-se disposto a acolher sem qualquer transição um criminoso no seu paraíso não tinha uma única palavra de tolerância para os devotos, os carolas, os piedosos, os santinhos. Esses despertavam a sua ira, e para ser como Jesus é necessário – sinto dizer – que despertem também a sua. Para demonstrar de forma conveniente a implacável intolerância de Jesus para com os religiosos seriam necessários quatro evangelhos.
Deve bastar, no entanto, o relato da homérica lavada que levou um fariseu imprudente que convidou Jesus para jantar. Fique pelo menos a lição: se não quer ser como ele, pelo menos não convide Jesus para jantar.
Enquanto ele ainda estava falando, um fariseu pediu que Jesus fosse jantar com ele. Ele entrou na casa do fariseu e reclinou-se à mesa para comer. O fariseu ficou surpreso ao ver que ele não havia lavado as mãos antes da refeição. – Vocês, fariseus – o Senhor disse a ele, – limpam a parte de fora dos copos e dos pratos, mas por dentro estão cheios de cobiça e perversidade. Loucos! Aquele que fez o exterior não foi o mesmo que fez o interior? Dêem como esmola o que vocês têm no interior dos pratos, e para sua surpresa tudo será puro para vocês. Mas ai de vocês, fariseus, que dão a décima parte até da hortelã, da arruda e de toda espécie de hortaliças, mas passam longe do veredicto e do amor de Deus. O certo era que fizessem uma coisa sem deixar de fazer a outra. Ai de vocês, fariseus que amam os lugares mais importantes da sinagoga, e amam ser cumprimentados nas praças. Ai de vocês, estudiosos da lei e fariseus! Impostores! Vocês são como sepulturas não marcadas, sobre as quais as pessoas andam sem saber.
Neste ponto um perito na Lei que estava presente disse: – Mestre, quando o senhor diz isso também está nos ofendendo. Mas ele disse:
– Ai de vocês também, peritos na Lei!Vocês sobrecarregam as pessoas com cargas difíceis de se levar, mas vocês mesmos não mexem sequer um dedo para carregá-las.
Ai de vocês, que constroem mausoléus para os profetas, quando foram os pais de vocês que os mataram. Fazendo isso vocês confessam que estão em acordo com o que os seus pais fizeram: eles mataram os profetas, vocês constroem sepulturas para eles. É por isso que a sabedoria de Deus diz: “Eu enviarei a vocês profetas e apóstolos; alguns deles vocês matarão, outros vocês irão perseguir. Para que dessa geração seja requerido o sangue de todos os profetas derramado desde que foram lançadas as bases do universo: do sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e a casa de Deus.” Eu afirmo a vocês que isso será exigido desta geração.
Ai de vocês, peritos na Lei! Vocês negaram às pessoas o acesso à chave do conhecimento; vocês mesmos não entraram, e impediram os que estavam entrando.
É preciso ainda ressaltar que a religiosa intolerância de Jesus para com os religiosos em nenhum momento esteve voltada para o que chamaríamos mais tarde de pagãos. A Jerusalém do tempo de Jesus era cidade ocupada pelos romanos, apinhada de sacrílegos templos, estátuas, estádios, quartéis, teatros e banhos públicos que os judeus piedosos só faziam condenar. Incrivelmente, não chegou até nós nenhuma palavra de condenação de Jesus contra essas barbaridades; pelo contrário, que Jesus estava favoravelmente familiarizado com a cultura romana fica claro, por exemplo, no uso natural e muito apropriado que ele faz do termo hipócrita (ator, mascarado, canastrão), emprestado do teatro, forma de arte que os judeus de boa estirpe ao mesmo tempo desconheciam e abominavam.
O desconcertante é que, ao mesmo tempo em que tolerava os pagãos, Jesus batia de frente contra os que afirmavam terem o monopólio de acesso ao Verdadeiro Deus. Jesus reconhecia que o
vasto e inclassificável Deus das escrituras hebraicas era também o seu, mas ao mesmo tempo asseverava que os sacerdotes, fariseus e intérpretes que pretendiam tê-lo seqüestrado para si, fechando-o dentro de um sistema religioso estanque, confortável e opressor, não tinham a mínima idéia de com quem e de quem estavam falando.
O primeiro passo para fazer no nosso tempo o que Jesus fez no seu é, incrivelmente, abrir mão de qualquer palavra de condenação contra os ateus, os feiticeiros, os satanistas, os liberais, os wiccans, os macumbeiros, os budistas, os hindus, os animistas – agnósticos e pagãos de todos os matizes. O alvo da nossa intolerância deve ser outro, o alvo que foi também o de Jesus: os que passeiam pelo mundo crendo ter o aval inequívoco e a credencial indelével do Verdadeiro Deus. Aqueles que, nas palavras de Paulo, estão persuadidos de serem “guias dos cegos, luz dos que se encontram em trevas, instrutores de ignorantes, mestres de crianças, tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade” – mas que “ensinam os outros sem ensinarem a si mesmos”.
Nós. Quando apenas esses nos fizerem perder toda a paciência e a compostura; quando apenas esses nos levarem a abrir a boca em imprecações e maldição, estaremos sendo como Jesus.